22/06/2010

Ação dos Orixás Sobre Seus Filhos.

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Trazidos para este continente pelos negros escravizados, os deuses africanos (orixás) estabeleceram uma crescente legião de seguidores, praticantes das diversas correntes da nossa religiosidade afro. Traduzir os sinais dessas entidades na vida dos seres humanos é condição básica para o desenvolvimento dos seus adeptos.
Ritual iniciático no candomblé: troca energética com o orixá 
O candomblé é uma religião muito próxima da realidade humana, na qual sempre existe um jeito para tudo. Intelectuais ou analfabetos, gente pobre ou rica, heteros ou homossexuais, negros ou brancos, todo mundo pode ser beneficiado pela intervenção de um babalorixá ou uma ialorixá (o pai ou a mãe-de-santo no comando do terreiro).
Outro ponto típico dessa religiosidade é que suas práticas servem para produzir harmonia e expansão pessoais aqui no presente, restaurando o equilíbrio de forças entre o orum (o mundo do além, o sobrenatural) e o ayé (a terra, o mundo material). Nesse processo destaca-se a presença do orixá de cada indivíduo, ou seja, da divindade africana à qual ele está relacionado. Ori é a cabeça da pessoa, uma região fundamental ao seu intercâmbio energético com a força mística personificada pelo orixá (o dono do ori), popularmente chamado de santo-de-cabeça. A energia emanada dos orixás é o axé, a força vital de que todo ser vivo precisa para manter-se saudável.


filho-de-santo saudando a divindade: pedidos de ajuda 
Numa definição sucinta, o candomblé é o culto aos orixás. Sendo que "candomblé" é o termo genérico atribuído às diversas correntes derivadas do culto aos deuses africanos, trazido pelos negros escravizados que começaram a chegar neste continente no século 16. Suas diferentes raças e origens (jeje, iorubá, angola, ketu, malê, efam, congo, entre outras) explicam a multiplicidade de suas manifestações pelo território brasileiro, o que faz o candomblé da Bahia, por exemplo, ter características distintas do candomblé praticado no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Ele se mantém fragmentado em várias "nações", conservando, entretanto, uma unidade em torno da sua essência original, que se acredita remontar à pré-história.
Aos orixás são feitos pedidos de proteção, de saúde, de prosperidade, de ajuda na resolução de problemas existenciais, seja para conseguir um emprego, recuperar um amor ou favorecer uma transação comercial, seja para enviar ou desfazer trabalho de demanda (magia para prejudicar). Tem-se a impressão de que não há limites à ação dessas forças na vida dos seres humanos, inclusive porque o candomblé não é regido pela dicotomia que separa as coisas entre bem e mal. Daí vem o preconceito e o medo que os leigos sempre alimentaram contra os macumbeiros, geralmente encarados como indivíduos sem ética e dispostos a dar qualquer atendimento em troca de uma boa recompensa.
Pelo enfoque da psicologia, os orixás, inquices e voduns (nomes dessas entidades em outras tradições de candomblé) são arquétipos do comportamento humano, são personalidades que definem traços específicos. O rico panteão africano contém mais de 600 orixás, porém os tipos mais conhecidos entre nós formam um grupo de 16 deuses. Eles também estão associados à corrente energética de alguma força da natureza. Assim, Iansã é a dona dos ventos, Oxum é a mãe da água doce, Xangô domina raios e trovões, e por aí afora.
Uma boa demonstração dessa influência cultural, fora das comunidades de seguidores, são as concorridas festas dedicadas à Iemanjá, a Rainha das Águas , e a Ogum, o Senhor da Guerra, sincretizado na umbanda com São Jorge. Ogum foi nomeado patrono das nossas forças armadas, e Iemanjá, a Grande-Mãe africana que veio zelar por seus filhos nestas terras, configura uma das mais belas expressões da alma religiosa nacional. Anualmente, as ofertas que os devotos da deusa lhe fazem no mar são comemorações amplamente noticiadas pela mídia, constituem rituais coletivos abertos a todos. Penso que são uma outra maneira encontrada pelo nosso povo para renovar-se no oceano desse infinito amor, lavando-se de ódios e amarguras antes de seguir caminho.
Contribuindo para a divulgação das religiões dos orixás no País, Carlos Eugênio Marcondes de Moura lançou recentemente outra coletânea de ensaios, extraídos da pesquisa de autores cujo trabalho tende a permanecer mais restrito ao ambiente acadêmico. Intitulado Candomblé: Religião do Corpo e da Alma (Pallas Editora), este é o sétimo de uma série de livros, iniciada em 1981, que se destina a resgatar a produção de antropólogos, sociólogos e psicólogos, brasileiros ou não, empenhados em investigar a religiosidade afro no Brasil. Como organizador da coleção, Carlos Eugênio realizou extenso levantamento bibliográfico acerca do culto aos orixás no Brasil, Cuba, Haiti, Nigéria e Benin, chegando a mais de dois mil títulos. 
Tipos Psicológicos nas Religiões Afro-brasileiras é o subtítulo desse novo volume, constituído de seis ensaios que exploram as identidades míticas e sexuais próprias do culto.
Em "De Iyá Mi a Pomba-gira: Transformações e Símbolos da Libido", Monique Augras analisa os aspectos da sexualidade feminina que são destacados pelos seguidores das nossas religiões de origem afro. A propósito, convém saber que as mães ancestrais (as Iyami Oxorongá) tinham sua face terrível intocável, algo que foi suprimido da figura de Iemanjá – também assimilada com várias Nossas Senhoras – pela umbanda.
A Rainha das Águas, então, é apresentada como "uma moça branca, linda, de cabelos compridos, com vestido branco-azulado, que sai do mar, cheia de luz. Essa imagem impôs-se como única representação de Iemanjá, a ponto de moldar a expressão corporal de suas sacerdotisas", comenta Augras, informando que o "iemanjismo" nasceu de um desdobramento da umbanda no Rio de Janeiro.
Esvaziada do seu conteúdo sexual, Iemanjá vira a mãe desafricanizada, moralizada. Na sua origem ela é esposa de Oxalá, o pai de todos os orixás, havendo tradições que a situam como amante de Orumilá e de Orânhiã. Pois a poligamia faz parte dos relacionamentos entre os deuses africanos.
No extremo oposto à Iemanjá, Monique Augras expõe a função da Pomba-gira, no contexto da umbanda, como entidade que subverte a ordem pela manifestação livre do poder genital feminino. A Pomba-gira é a forma feminina de Exu, e nos meios umbandistas ela pode ser descrita como serva de Iemanjá. Demonstra agressiva sensualidade, traz flores nos cabelos e usa saias rodadas, executando uma dança frenética.
O povo tem o hábito de dizer que são espíritos de prostitutas que baixam nos terreiros. Todas usam as cores vermelha e preta, e, no caso de ser acrescentado o branco, trata-se de Pomba-gira cruzada com a "linha das almas". Entre as mais cultuadas estão Maria Padilha, Maria Quitéria, Maria Molambo, Rosa Caveira, Pomba Rainha, Pomba-gira Cigana e Pomba-gira das Almas. Segundo Augras, a Pomba-gira é fruto da criatividade carioca, da adaptação à nossa realidade de uma divindade masculina – Bombojira –, o equivalente congo do Exu iorubá.
Na cosmologia africana, o mundo começa com a proposição da cabaça igbá-odu, dividida em duas metades ligadas e simbolizando a esfera do invisível e o plano físico. Para o adepto do candomblé, o corpo, enquanto principal veículo à manifestação dos orixás, é o elemento que auxilia a suprimir a distância entre o invisível e o visível. Por isso o cumprimento das obrigações rituais assegura a saúde e o bem-estar da pessoa, garante o necessário equilíbrio entre ela e o seu orixá.
No ensaio "O Código do Corpo: Inscrições e Marcas dos Orixás", José Flávio Pessoa de Barros e Maria Lina Leão Teixeira, pesquisando grupos religiosos de Salvador, Bahia e do Rio de Janeiro, trataram das questões relacionadas à saúde e ao sistema de classificação de doenças dos seus praticantes.
Em termos religiosos, o corpo está diretamente relacionado a uma divindade e, conseqüentemente, a um dos elementos naturais primordiais (água, terra, fogo, ar), entre outras coisas agregadas por associação. O corpo é entendido como uma manifestação da ação sobrenatural, e seu processo de criação atesta isso. É o orixá primordial denominado Ajalá (uma das qualidades de Oxalá), o fazedor de cabeças, que combina vários elementos naturais no orum para moldar o doble do ser humano. Concluído este doble, cabe a Orinxalá (outro título de Oxalá) insuflar-lhe a vida com seu hálito divino (emi).  
Além do orixá de cabeça, que é o principal e define o comportamento físico-biológico-psicológico de uma pessoa, todo mundo também tem o ajuntó, o segundo orixá. A maneira de saber o santo-de-cabeça é por meio do jogo de búzios, realizado por um pai ou mãe-de-santo, que ainda poderá diagnosticar doenças e outros distúrbios da vida pessoal do consulente.
Barros e Teixeira verificaram que as doenças e a cura têm, na interpretação do candomblé, um caráter essencialmente sobrenatural, motivado por determinados fatores, tais como a ação ou "marca" de um dos orixás sobre o indivíduo escolhido para cumprir a iniciação parcial ou total. Nos casos observados, eles concluíram que as doenças e os distúrbios psicossomáticos motivaram a maioria das decisões pessoais para o desenvolvimento da iniciação.
A ação ou marca de um dos orixás sobre um iniciado que tenha negligenciado suas obrigações religiosas e sociais é outro fator. Considerando que o corpo é um "centro de inscrições e símbolo do contrato sócio-religioso estabelecido a partir da iniciação", a instalação do mal físico pode significar a transgressão de regras já definidas, bem como a negligência com os assentamentos (o processo ritualístico que liga o axé a um corpo material) individuais. A ausência às atividades litúrgicas dos terreiros também pode ocasionar uma quebra de laços, abalando o axé e a força de trabalho da comunidade.
A quebra de regras, transgressões de tabus alimentares ou de interditos sexuais, estipulados pelos laços de parentesco inerentes à família-de-santo, são outras formas de aborrecer os deuses africanos. "Percebemos que não se trata de preconceitos rígidos", anotaram os autores, "mas de regras e valores que estão dirigidos para a reafirmação do poder sobrenatural, isto é, da ação dos orixás sobre os seres humanos". Infrações dessa natureza podem causar problemas físicos, psíquicos ou sociais.
A contaminação pelo contato com os eguns (espíritos de mortos) é vista como algo bastante poluidor, gerando as perturbações denominadas de "encosto", responsável pelo desequilíbrio físico e social do indivíduo. Os rituais de purificação ajudam a cortar os vínculos com o morto e a solucionar os conflitos daí resultantes.
Por último, os autores apontam a contaminação por elementos naturais, pela ação de vírus, micróbios e demais agentes. Essa modalidade de contágio é outro exemplo do descuido com o próprio corpo, que na interpretação do candomblé deve refletir o equilíbrio proporcionado pelo axé, a qualidade mágico-sagrada de toda divindade, inerente a todas as coisas. Portanto, o adepto assim contaminado pode estar na situação conhecida por "corpo aberto", característica da perda ou falta de axé. Perder axé pode ser conseqüência da menstruação ou da vida sexual desenfreada, de transgressões ou do desrespeito a regras determinadas pelo pensamento sócio-religioso.
José Fávio de Barros e Maria Lina Teixeira constataram "que as representações de sintomas e doenças congregam um inter-rela- cionamento simbólico que associa e une as diferentes partes do corpo, os orixás e seus mitos e histórias, assim como os princípios da organização social". No caso de um iniciado, a sintomatologia pode ser a marca do seu santo-de-cabeça, ou de outra entidade secundária, integrante do seu "carrego de santo", enfatizam os autores. Vejamos quais são essas relações.
Obaluaiê (versão jovem de Omolu) responde pelas doenças de pele e epidêmicas . Mas é a Oxumarê (orixá bissexual que simboliza a transformação incessante) que se atribui o vitiligo, e a Nanã (a mais velha deusa das águas) que se confere a erisipela. Acredita-se que o parentesco mítico entre eles justifique essa divisão de responsabilidades.
A marcação da relação de domínio entre orixá e adepto também aparece sob a forma de alergias cutâneas e dermatoses como coceiras e manchas, e recebem tratamento ritual com banhos de ervas e ofertas de pipocas – "as flores de Obaluaiê".
Iemanjá e Oxum, ambas relacionadas ao elemento água, à feminilidade e à maternidade, têm por "marcas" as doenças venéreas femininas, a falta/excesso de regras menstruais, os abortos, a infertilidade e outros distúrbios do gênero.
Xangô e Exu, divindades viris do elemento fogo, estão ligadas aos problemas masculinos de impotência e infertilidade. As queimaduras também estão na sua esfera de influências.
A Oxóssi, a divindade da caça e "dono de todas as cabeças", de acordo com os candomblés ketu, estão associados os distúrbios emocionais, as chamadas doenças da cabeça e as manifestações de loucura. Os autores explicam que tais sintomas também são atribuídos a Ossâim e, mais raramente, a Iansã, que ainda está associada à ninfomania. Outros sinais de Oxóssi são os males do fígado e da vesícula, as úlceras estomacais e as enxaquecas, sintomas que às vezes são notados como particularidades de seu filho Logunedé, orixá bissexual ligado à água doce e à floresta.
Por sua afinidade com o elemento ar, Iansã pode marcar os filhos transgressores através de asma, falta de ar, enfisemas e outros males das vias respiratórias. Ogum, patrono do progresso tecnológico, se relaciona com os ferimentos e cortes causados por instrumentos e acidentes automobilísticos.
Os pesquisadores verificaram que as doenças do sistema circulatório e cardiovascular, como as inchações, artrites e artroses, vinculam-se aos orixás primordiais da criação: Oxalá, Nanã e Iemanjá. E que os "males de velhos" (distúrbios e dores renais ou reumatismo) são atribuídos a Oxalá e Nanã. 
A Aids é tida como um flagelo de Ossâim, fato que os autores interpretam pela relação desse orixá "com a sexualidade de maneira geral e em especial com a homossexualidade".
Na terapêutica dos terreiros de candomblé, não se pode deixar de destacar as funções desempenhadas pelas espécies do mundo vegetal, que são fontes de axé e elementos essenciais no restabelecimento da harmonia entre o ser humano e o mundo divino. Isso é algo que as religiões afro-brasileiras procuram estender a todos os componentes de suas comunidades, e mesmo aos seus freqüentadores ocasionais, que recorrem às suas práticas apenas nos momentos de crise.
 

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