23/04/2012

APENAS UM CAVALO

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Foi quando eu tinha seis anos de idade que eu pisei pela primeira vez em um terreiro de umbanda. A sensação foi como a de um filho que reencontra a mãe após uma longa viagem. Pude reconhecer de imediato seu cheiro, sua voz, e, principalmente, seu abraço. Percebi então, que eu era parte daquilo e aquilo me era por inteiro. 

De lá para cá já se passaram vinte e sete anos, mas a sensação do primeiro dia ainda não passou. Meu coração ainda bate forte quando sinto o cheiro da erva queimando na brasa e escuto o som dos tambores.
Talvez seja isso o que acontece com qualquer um que encontra a sua religião ou filosofia de vida, não sei, sei que comigo é assim. As lágrimas são tão impossíveis de controlar como a felicidade depois de mais uma missão cumprida. Por mais comprida e cansativa que tenha sido.

Renasci em meio aos brados de valentes Caboclos e às palavras sábias e mansas de alguns que viveram a escravidão. Aprendi a perdoar, mas não deixei de aprender a lutar contra as injustiças, assim como não deixar de sorrir para a dor e as aflições. Solidão eu nunca senti, mas já me arrependi de algumas companhias.

Guiado muitas vezes como um cavalo com três ou mais arreios, me entreguei em um caminho que não sei e nem nunca soube o final, mas sei que é o meu. Chorei a dor das decepções, mas nunca lamentei nenhuma das emoções. Minhas angústias quase me derrubaram, mas me fizeram perceber que somos fortes, quando só nos resta esta opção.

Quando vi meus irmãos e eu sendo humilhados pela nossa fé limpa e cristalina, saí às ruas. Desejei ter mais que uma cara para colocar a tapa. Ofereci a outra face, mas após isso eu não encontrei nada que nos dissesse para recuar. Avançamos.

Enquanto semeávamos, outros tentavam destruir nossa lida com a terra.  Demos, e ainda damos bons frutos. Muitos colheram, colhem e saboreiam até hoje. Pediram-nos para dividir o crédito do plantio, então dividimos. Mas estes não sabem o quanto nossa pele corou no sol. Não sabem o peso da enxada e nem a dureza da terra. Mas dividimos, com o acordo que daquele dia em diante, eles nos ajudariam a plantar. Mais mãos, mais sementes. Certo? Errado!

Bastou alguns arranhões naturais da lida para fazê-los trocar a enxada pela pedra, tentando colher forçadamente algo que a natureza lhes nega. Difícil de entender como se acham humildes dizendo que as pedras que nos atiram são pobres, enquanto nós somos vaidosos porque trabalhamos com enxadas bem eficientes.

Passem por onde passamos, pisem onde pisamos, caminhem como caminhamos, plantem o que plantamos. E só depois queira colher o que colhemos. Encoste seus ouvidos na terra e ouça o que ela tem a dizer. Já fez isso? Já perguntou para quem a árvore produz seus frutos? Já pediu licença para apanhar uma folha?

Não queira ser um guerreiro nem um cavalheiro, seja apenas um cavalo, com muitos arreios. 

PUBLICADO NA COLUNA DE RICARDO BARREIRA NO JORNAL BOM DIA EM 29/10/2011

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