05/04/2011

DE OLHOS FECHADOS

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           Sentado ali em frente de seu congá, o velho pai de santo relembra com surpreendente nitidez a sua infância e seu primeiro
contato com a espiritualidade.  Nitidamente ele se vê na tenra infância a brincar sozinho no amplo quintal da casa de seus pais. 
Lembra-se que alguma coisa o fez olhar para as nuvens e que, diante dele, uma estranha imagem se formou: um velho sentado ao
redor de uma fogueira e um menino a ouvir-lhe estórias.  De alguma maneira o menino ao ver aquela cena sabia que se tratava dele
mesmo.
          
O tempo passou e a cena jamais esquecida e também jamais revelada, o acompanha em sonhos e lembranças. Cresce e
acaba se tornando médium umbandista.  Aos poucos vai conhecendo seus guias que vão tomando seu corpo nas diversas "giras de
desenvolvimento".  Primeiro o Caboclo, que lhe parece muito grande e forte; depois os demais, até que, ao completar 18 anos, o seu
Exu também recebe permissão para incorporar.
          
Já não é mais médium de gira.  A bem da verdade, ocupa o cargo de pai pequeno do terreiro.  Percebe que não tivera uma
adolescência como a da maioria dos jovens que lhe cercam na escola.  Não vai a bailes, festas... Dedica-se com uma curiosidade e um
amor cada vez maior à prática da caridade.  Os anos passam e acaba por abrir seu próprio terreiro.  Inúmeras pessoas procuram os
seus guias e recebem sempre um lenitivo, uma palavra de consolo e esperança.
          
Foram tantos os pedidos e tantos os trabalhos realizados que já perdera a conta.  Viu inúmeras pessoas que declaravam
amor eterno pela Umbanda se afastarem criticando o que ontem lhes era sagrado porque alguns pedidos não haviam sido alcançados
na plenitude desejada...  Presenciou pessoas que, vindas de outras religiões, encontravam a paz dentro do terreiro.  Este, era mantido
a duras penas já que nada cobrava por trabalhos realizados (dai de graça o que de graça recebestes).
          
Solteiro permanecia até hoje pois embora tivesse várias mulheres que lhes foram caras, nenhuma delas suportou ficar ao
seu lado.  Para ele, a vida sacerdotal se impunha a qualquer outro tipo de relacionamento.  Mesmo assim, amava todas aquelas que
lhe fizeram companhia em sua jornada terrena.  Brincava o velho pai de santo, quando lhe perguntavam se era casado... Respondia
bem humorado que se casara muito cedo ainda menino.  A curiosidade dos interlocutores quanto ao nome da esposa era satisfeita
com uma só palavra: Umbanda.  Este era o nome de sua esposa.
          
Com o passar do tempo a idade foi chegando. Muitos de seus filhos de fé seguiram seus destinos, vindo a abrir, eles
também, suas casas de caridade.  O peso da idade não o impede de receber suas entidades e ainda ecoa pelo velho e querido
terreiro o brado de seu Caboclo; o cachimbo do preto velho perfuma o ambiente, a gargalhada do Exu ainda impressiona, a alegria
do Erê emociona a ele e a todos... Enfim, sente-se útil ao trabalhar.
          
Hoje não tem gira, o terreiro está limpo, as velas estão acesas e tudo parece normal.  Resolve adentrar ao terreiro para
passar o tempo.  Perdera a noção das horas.  Apura os ouvidos e sente passos ao seu redor.  Percebe que alguém puxa pontos e o
atabaque toca.  Ele está de frente para o congá.  O cheiro da defumação invade suas narinas... Seus olhos se enchem de lágrimas na
mesma proporção que seu coração se enche de alegria. Estranhamente, não sente coragem ou vontade de olhar para trás... apenas
canta junto os pontos.
          
Fixa as imagens do altar, fecha os olhos e ainda assim vê nitidamente o congá, parece que percebe o movimento do
terreiro aumentar vira de costas para o congá e a cena o surpreende: Vê Caboclos, boiadeiros, pretos velhos, marujos, baianos, erês
e toda uma gama de Guias.  Até os Exus e Pomba Giras estão ali na porteira. Se dá conta que os vê como são - não estão
incorporados, todos lhes sorriem amavelmente.
          
Dentre tantos Guias percebe aqueles que incorporam nele desde criança.  Tenta bater cabeça em homenagem à eles mas
é impedido.  O Caboclo, seu guia de frente se adianta e lhe abraça, brada seu grito guerreiro sendo acompanhado pelos demais.  O
velho pai de santo não agüenta e chora emocionado...
          
As lágrimas lhe turvam a vista. Ele fecha seus olhos e ao abri-los, todos os guias ainda permanecem em seus lugares,
porém calados... Nota uma luz brilhante em sua direção. Iansã e Omulu se aproximam.  Seu Caboclo os saúda e é correspondido.  A
luz o envolve.  Já não se sente velho, na verdade sente-se jovem como nunca, seu corpo está leve e levita em direção à luz.  Todos
os guias lhe fazem reverência.  O terreiro vai ficando longe envolto em luz... Sorri alegre, missão cumprida... No dia seguinte
encontram seu corpo aos pés do congá.  Parece que sorri...
 

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